É possível amordaçar a democracia sem um golpe militar
O Brasil vive um momento de apreensão diante do perigo de que a democracia possa ser comprometida. Engana-se, porém, quem acredita que os golpes contra as liberdades são somente militares. Há mil formas de ferir o coração da democracia sem necessidade da ajuda do exército. Em alguns momentos, as forças armadas podem inclusive ser um escudo contra quem põe em perigo a vontade popular.
Existem muitas formas de restringir os valores democráticos e de burlar a opinião pública. Quando a maioria da sociedade se revela, por exemplo, contra os governantes que considera corruptos, é porque o fato de se apoderar do dinheiro público e usá-lo em seu próprio interesse é visto como um golpe contra a democracia.
A democracia é vilipendiada não só quando as liberdades individuais são cerceadas, mas também quando, por exemplo, os crimes ficam impunes. As comunidades pobres das periferias violentas das cidades são despojadas dos valores da democracia quando são obrigadas a viver em estado de sítio, ameaçadas pelo tráfico de drogas ou pelo abandono do estado.
É um golpe contra a democracia quando se pretende que o ensino nas escolas seja asséptico, sem debate cultural ou sem o contraditório, ou quando se instiga os alunos a delatar os professores. E é um golpe contra a democracia que um professor do ensino básico precise trabalhar dez anos para ganhar o que um simples deputado custa em um mês ao tesouro público entre salário e privilégios. É um golpe contra os valores da civilização quando há professores no Rio que passam meses sem receber seu salário, enquanto dezenas de políticos acabaram na prisão como corruptos. Vários desses professores já se suicidaram. Enquanto isso, os professores têm de assistir ao espetáculo grotesco dos deputados presos que se livram de pacotes de dinheiro da corrupção jogando-os pela janela ou no vaso sanitário, ou escondendo-os nas meias de sua mãe. Pode haver zombaria maior contra a democracia?
A democracia é ferida quando os governantes atentam contra a liberdade de expressão dos meios de comunicação. Sobre isso, a maior defesa da liberdade de imprensa que ouvi veio da boca da ex-presidenta Dilma quando, em seu discurso de posse de seu primeiro Governo, afirmou: “Prefiro o barulho às vezes dolorido da imprensa livre ao silêncio das ditaduras”. É exercida, de fato, uma pressão ditatorial toda vez que um Governo democrático tenta amordaçar os meios de comunicação e amedrontar os jornalistas.
É um golpe contra a democracia quando o Senado, de surpresa, aprova um aumento salarial de 16% para os magistrados do Supremo, o que significa um aumento orçamentário em cascata de 5 bilhões de reais anuais em um país com déficit astronômico, com mais de 12 milhões de desempregados e com os hospitais caindo aos pedaços. São um golpe contra a democracia e contra os trabalhadores comuns esses dois milhões de funcionários públicos do Estado que ganham, tendo o mesmo grau profissional, quatro vezes mais que os das empresas privadas e gozam, além disso, de inúmeros privilégios que só eles possuem.
É um golpe contra a democracia, sem necessidade de usar o exército, o genocídio ecológico e humano que se anuncia na Amazônia, pulmão da Humanidade, assim como esse cemitério de 63.000 pessoas, na maioria negros e jovens, assassinadas a cada ano sem que os Governos sejam capazes de frear essa guerra. Trata-se de uma ditadura diante da qual os governantes fecham os olhos. E é uma ferida para a democracia brasileira que este seja um dos países do mundo com o maior número de feminicídios e de linchamentos de homossexuais.
Diante dessa série de golpes contra a democracia sem necessidade de intervenção militar, explica-se que em uma das últimas pesquisas nacionais 80,4% dos brasileiros tenham se declarado insatisfeitos com um regime democrático. Daí a sentir nostalgia por um Governo autoritário é só um passo. Que os governantes que fecham os olhos diante do grito da sociedade que se sente cansada de ser enganada não se esqueçam disso. Amanhã poderia ser tarde demais.
El País
Foto: Evaristo Sa/AFP