Nova denúncia contra Lula tem mais ilegalidades que todas as outras; entenda
“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. A célebre frase de Karl Marx ganhou contornos de atualidade no último dia 14, quando a força-tarefa Operação Lava Jato de Curitiba ofertou sua quarta ação penal contra Luiz Inácio Lula da Silva, por suposto ganho ilegal de valores cedidos pela empreiteira Odebrecht, em troca de favorecimentos à empresa em contratos públicos.
Isso porque a denúncia repete as ilegalidades e impossibilidades processuais constantes nas anteriores, o que já é uma tragédia. Mas não apenas mimetiza a fórmula ilegal: reproduz acusações já apresentadas, apreciadas e rejeitadas pela Justiça, como se um novo fato fosse, a justificar um novo processo.
A denúncia, de 121 páginas, está aqui. É quase tão caudalosa quanto a primeira da série, que tinha 149 páginas, de 2016, sobre o triplex do Guarujá (SP), imortalizada na apresentação de PowerPoint de Deltan Dallagnol. Em 85 das 121 páginas, os assuntos tratados não são relacionados ao suposto crime que se denuncia: lavagem de dinheiro por meio de doações fraudulentas da Odebrecht ao Instituto Lula.
Nessas páginas, os procuradores da Lava Jato repetem todo o teor do PowerPoint de 2016, mas de forma estendida. Discorrem sobre a teoria de que Lula era o chefe de um esquema criminoso que fraudava contratos públicos em desfavor da União em troca de vantagens recebidas em dinheiro ou bens patrimoniais, para si próprio, aliados, campanhas eleitorais ou partido político.
Sendo a teoria da Lava Jato amparada pela realidade ou não, fato é que o que precisa constar em uma denúncia para que a Justiça possa acatá-la é algo muito mais simples: a descrição de um ato criminoso, a atribuição de sua autoria a alguém e as provas de que o delito em questão foi cometido pelo acusado que se aponta. Isso, assim como o libelo acusatório de 2016, a nova denúncia não traz.
A inquestionável falta de provas da denúncia
Eis o crime que tenta denunciar o MPF-PR: a empresa Odebrecht, entre dezembro de 2013 e março de 2014, realizou quatro doações, no valor de R$ 1 milhão cada, para o Instituto Lula. Na verdade, porém, dizem os acusadores, não era intenção da empreiteira doar esses valores ao instituto. Tratava-se de um pagamento de propina ao ex-presidente, travestido de doação a seu instituto, em troca de favorecimentos que Lula teria garantido à companhia em contratos públicos enquanto era presidente da República.
De início, para aceitar a lógica da denúncia, é preciso acreditar que Lula favoreceu a Odebrecht enquanto era presidente, mas, por algum motivo, aceitou, na negociata em que teria se envolvido, que a propina por sua atuação no esquema fosse paga só quatro anos após ter deixado a Presidência da República.
Então, segundo a lógica da Lava Jato, entre 2010 e 2014, Lula teria aguardado pacientemente até que a empreiteira pagasse pelos favorecimentos há anos concretizados. Nesse ponto, há uma vantagem em relação à denúncia do triplex: pelo menos a propina teria chegado a Lula através de seu instituto, e não por meio de um imóvel no Guarujá do qual jamais foi dono ou usufruiu, e de que nem a empreiteira que estaria pagando a propina era dona, mas sim seus credores judiciais.
Depois, os procuradores têm que enfrentar outros dois fatos que não colaboram com sua tese: o primeiro é que as doações foram feitas todas publicamente e de acordo com o ordenamento normativo em vigor no país, seguindo todas as regras contábeis, tributárias e comerciais vigentes, constantes em declarações de renda, balanços financeiros e informes à Receita Federal.
O segundo é o de que os valores doados em nada diferem, em escala e procedimentos, de muitas outras doações idôneas desse tipo, feitas por outras empresas ao mesmo Instituto Lula. E também em nada diferem em procedimento ou valores de doações que essas mesmas empresas já fizeram a entidades semelhantes de manutenção de acervo histórico presidencial, como o Instituto Fernando Henrique Cardoso ou o Instituto Obama, nos Estados Unidos.
A questão, inclusive, já foi apreciada pela Justiça em ação penal anterior proposta pelo mesmo MPF-PR contra os mesmos réus, tendo como base outra empresa e outra doação. Daí a farsa da denúncia, que tenta fazer julgar algo que já foi julgado, conforme explica ao Brasil de Fato o advogado Fernando Fernandes, que representa Paulo Okamotto.
“Não há diferença entre essas doações e outras já realizadas pela Odebrecht, pela OAS ou qualquer empresa, sobre as quais a Justiça já se posicionou: não constituem lavagem de dinheiro. O assunto já foi objeto de ação anterior, e Paulo Okamotto já foi absolvido da acusação.”
Quer dizer: em princípio, nada nas operações de doação faz crer que tenham sido um acobertamento do crime de lavagem de dinheiro. À primeira vista, são transações legais, corriqueiras e insuspeitas.
De qualquer maneira, o Ministério Público bem poderia demonstrar o ânimo criminoso que teria movido as doações, se tivesse havido um. Para tanto, precisaria deixar claro e provado:
a) Qual foi o favorecimento que Lula forneceu em troca da propina travestida de doação.
b) Por que as doações, na verdade, não são doações, e sim pagamento de propina.
A tarefa, como se nota, não é fácil, mas não seria impossível. Os procuradores têm à sua disposição uma série de ferramentas legais para alcançar a materialidade de atos criminosos. Uma prova poderia ser, por exemplo, uma escuta telefônica em data e horário autorizados pela Justiça em que Lula ou algum assessor combina com algum executivo da empreiteira que a favoreceria neste ou naquele contrato com a União em troca das doações – dali a uns quatro anos – a seu instituto.
O problema, e aí reside a repetição, é que os procuradores novamente acusam Lula (e também o presidente do Instituto, Paulo Okamotto) sem qualquer prova. Custa-se a crer, mas a denúncia, disponibilizada acima, é a própria prova do que se afirma.
Ao longo das 121 páginas do documento do MPF, não figura uma evidência sequer que sustente a tese acusatória. Não há uma gravação de interceptação telefônica, uma mensagem de texto, um e-mail trocado, um documento fraudado, um depósito bancário, uma foto de malas trocadas, um apartamento com milhões de reais dentro, uma testemunha, nada.
O simulacro de sustentação para a tese da Lava Jato dá-se por meio de delações premiadas assinadas por executivos e políticos que efetivamente confessaram e foram condenados por ter pago ou recebido propinas milionárias em desfavor da União – no caso, Marcelo Odebrecht e Antonio Palocci.
O problema – para essa e as outras acusações da Lava Jato contra Lula – é que réus da Justiça que assinam acordos de delação premiada não são testemunhas. Sua palavra não tem valor de prova testemunhal, quanto menos pericial ou documental.
Mas é só assim que o MPF, ao arrepio da lei, sustenta sua acusação. É só assim, muito embora a lei que cria o instituto da delação premiada (12.850/2013) seja cristalina ao afirmar, em seu 16º parágrafo do Artigo 4º:
“§ 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.”
A razão para a existência de tal norma é evidente. Não fosse assim, qualquer indivíduo que incorresse em ato delituoso poderia, a fim de livrar-se da consequência penal de seus feitos, criar as histórias e acusações que bem entendesse e bem interessasse aos procuradores, livrando-se em parte ou no todo dos débitos que tem com a Justiça. Por isso, delação só vale se acompanhada de provas.
Ainda assim, o Ministério Público Federal sustenta a tese de que Lula, com a ajuda de Okamotto, lavou dinheiro de propina por meio de doações declaradas e contabilizadas baseado unicamente em delações de réus confessos, que obtiveram vantagens judiciais cedidas pelo próprio MPF para assiná-las.
Seria surpreendente se fosse a primeira vez. Mas não é, trata-se do mesmo expediente utilizado pela Lava Jato para denunciar Lula no caso do triplex. Junto com Sergio Moro e os desembargadores do TRF-4, obtiveram a condenação na primeira oportunidade, para o vexame do Brasil diante da comunidade jurídica internacional.
O advogado Cristiano Zanin, que representa o ex-presidente Lula nas ações encampadas pela Lava Jato, resume a questão:
“Essa nova denúncia repete a mesma fórmula das anteriores. É uma denúncia sem qualquer materialidade, que tenta transformar quatro doações lícitas para o Instituto Lula, documentadas, contabilizadas e declaradas, em doações dissimuladas e ilícitas. É mais um grande absurdo. O único amparo para essa nova acusação, para variar, são delações, em especial a delação de Antonio Palocci.”
Brasil de Fato | Edição: Rodrigo Durão Coelho