31 de agosto de 2020
Manifestantes realizam protesto em frente ao prédio do Ministério Público Federal, em Curitiba. Foto: Gibran Mendes

Luiz Inácio Lula da Silva foi libertado. Mas a justiça não foi feita. Em novembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal decidiu restabelecer a jurisprudência garantista da Constituição, o que impede que uma pessoa seja presa até que todos os recursos a seu favor sejam esgotados. No entanto, não se pronunciou sobre o mérito do caso: Lula teve direito a um julgamento justo?

A maneira pela qual o ex-juiz Sergio Moro conduziu o processo contra o ex-presidente brasileiro foi objeto de controvérsia no meio jurídico desde o seu início. No entanto, graças ao apoio irrestrito de boa parte da imprensa brasileira e internacional e ao apoio da opinião pública, tornou-se o emblema da Operação Lava Jato. Mas a eleição de Jair Bolsonaro, a nomeação de Sergio Moro como ministro da Justiça e a publicação de conversas entre os procuradores da operação Lava Jato com Moro e outras autoridades, que expõem inúmeras ilegalidades cometidas durante o processo, fizeram com que os métodos desta operação fossem questionados. No entanto, até hoje, nenhum tribunal ousou questionar o mérito das 218 páginas da sentença que mudou o destino do Brasil e contribuiu para abrir as portas da presidência da República a Jair Bolsonaro. Chegou a hora do STF se debruçar sobre o assunto.

Vamos aos fatos.

O ex-presidente Lula foi condenado por receber um apartamento de uma empreiteira em troca de contratos públicos, de acordo com a delação de um condenado que mudou o seu depoimento em troca uma redução em sua sentença. No entanto, a investigação deixa claro que Lula ou seus parentes nunca residiram ou se apossaram dessa propriedade. O próprio Moro admite em seu veredito que o condena sem nenhuma evidência de um ato ilegal. Inclusive, o próprio ex juiz reconheceu nos embargos de declaração que a sentença contra Lula não tem como base a denúncia do MPF. Da mesma forma, sabia-se desde 2016 que os advogados de Lula foram grampeados ilegalmente, e vários ministros do STF declararam que, para prender Lula antes da campanha presidencial de 2018, Moro havia desobedecido às regras processuais e manipulado os mecanismos da condução coercitiva.

No entanto, boa parte da mídia, em vez de ter uma posição crítica e independente, tornou-se uma reprodutora das narrativas de Moro e dos procuradores de Curitiba, o que provocou que, num determinado momento, criticar a operação Lava Jato era sinônimo de complacência com corrupção.

Num país com sérios problemas de pluralismo (de acordo com a ONG Repórteres Sem Fronteiras, o Brasil ocupa o 107º lugar no ranking mundial de liberdade de imprensa) devido em grande parte à concentração excessiva dos principais veículos de informação, a divinização da Operação Lava Jato teve grandes consequências políticas e jurídicas. Moro e os procuradores se tornaram verdadeiros atores centrais na vida pública, cuja influência e poder excederam em muito o seu papel de juízes e membros do Ministério Público, o que lhes permitiu obter proteção contra as críticas vinculadas ao andamento do processo contra Lula. No Judiciário, isso se traduziu em uma verdadeira licença de impunidade: em uma decisão de 2016, o tribunal de apelação de Porto Alegre (TRF-4), que analisou a sentença de Lula, determinou que a Operação Lava Jato “não precisa seguir regras processuais comuns” porque “os processos trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”. Dessa forma, este tribunal absolveu Moro por ter divulgado uma conversa entre Lula e Dilma Rousseff, apesar de que o próprio STF considerou que se tratava de um ato ilegal. Segundo vários políticos, sem esse vazamento, é provável que o impeachment de Dilma Rousseff não teria acontecido.

No entanto, foi pela imprensa que a verdade acabou aparecendo. Um arquivo, com milhares de mensagens de texto, áudio e vídeo do serviço Telegram, divulgado pelo site The Intercept em colaboração com diferentes veículos ―incluindo El País― causou um terremoto político no país. Nessas conversas, Sergio Moro orienta as ações do ministério público e da polícia federal, decide quais evidências devem ser incluídas no processo, sugere a estratégia de comunicação do Ministério Público e oculta as diversas informações do caso ao STF. O juiz icônico na luta contra a corrupção era de fato juiz e parte.

Pela primeira vez desde o início da operação, o consenso da mídia em torno da figura de Moro estava chegando ao fim. No meio jurídico internacional, que foi um entusiasta da Lava Jato, a reação foi de estarrecimento: num manifesto assinado por 17 advogados, juristas, ex ministros da justiça e ex ministros de cortes constitucionais ―incluindo Susan Rose-Ackerman, Bruce Ackerman, Luigi Ferrajoli e Baltazar Garzón, entre outros— os signatários declararam que, por causa dos métodos da Lava Jato, a Justiça brasileira “vive atualmente uma grave crise de credibilidade dentro da comunidade jurídica internacional”.

E é com razão. Segundo uma professora de direito especializada no STF, “os argumentos jurídicos não prestam” no caso Lula.

Se quisesse restaurar a credibilidade perdida pelas ações de Moro e da Lava Jato, o STF deveria permitir que Lula tenha um julgamento justo, anulando os processos instruídos por Moro e reconhecendo que a corrupção não pode ser combatida usando métodos corruptos.

Gaspard Estrada (@Gaspard_Estrada), é diretor executivo do Observatório Político para a América Latina e o Caribe (OPALC) da Sciences Po.

El País