27 de janeiro de 2020
Foto: Marlene Bergamo

Luiz Inácio Lula da Silva está em liberdade há pouco mais de dois meses, após 580 dias de uma prisão que impediu sua candidatura nas eleições de 2018, vencidas por Jair Bolsonaro. A prisão não o desanimou. “Não posso ter medo”, afirmou durante esta entrevista, a primeira dada a uma mídia argentina após deixar a Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. “É preciso continuar lutando para reconquistar a democracia no Brasil”. Combates políticos contra a “direita fascista” estão próximos, avisa.

Apresenta-se bem humorado, vestindo uma gravata de listras diagonais predominantemente verdes e amarelas, as cores que, segundo ele, simbolizam a “defesa da soberania”, comenta antes da gravação começar. Diz que não voltará a brigar pela presidência, mas após uma pergunta admite a possibilidade de concorrer em 2022. “É preciso se preparar para voltar ao poder”.

Como o Brasil começa a funcionar apenas depois do Carnaval, que será no final de fevereiro, Lula se prepara para percorrer o país a partir de março, fazendo campanha para as eleições municipais de outubro. Um teste para medir a popularidade do atual mandatário na metade de sua gestão e a força da oposição, assim como sua capacidade de manter-se unida.

“Adoro viver, estou noivo e vou me casar” com a socióloga Rosângela da Silva, o ex-presidente anuncia com um gesto expansivo. Ambos foram almoçar após a reportagem, realizada na quarta passada no diretório nacional do Partido dos Trabalhadores, localizado no centro de São Paulo a poucas quadras da Praça da Sé, cenário dos atos que reuniram multidões por eleições diretas nos anos 80, período final da ditadura. Lula, como líder do recém-criado PT – fundado em 1980 -, foi protagonista da luta contra os militares e, antes disso, como dirigente sindical, havia comandado greves nas cidades industriais paulistas.

Lula foi preso político por duas vezes, a primeira em 1980 quando o general João Batista Figueiredo – venerado por Bolsonaro – governava, e em 2018 sob a administração do golpista Michel Temer, como consequência de uma sentença inventada pelo então juiz Sergio Moro.

Difícil é encontrar no Brasil contemporâneo uma biografia como a deste líder excepcional de 74 anos.

Se tivesse que descrever o tom de suas respostas durante o encontro que durou 1h13 – incluindo uma conversa informal – poderia dizer que, quando falou de Bolsonaro, o fez com indignação, mas talvez tenha se irritado ainda mais ao referir-se ao ministro de Justiça, Moro. O mentor da operação Lava Jato “é um mentiroso” a quem desafia “a apresentar uma única prova contra mim”.

Argumenta que Bolsonaro e Moro sofreram um revés político quando recuperou sua liberdade, e não descarta que o aprisionem novamente valendo-se de algum pretexto jurídico.

Já quando o assunto é a Argentina, o ex-torneiro mecânico muda de tom e revela que espera viajar para o país em breve.

“Espero que agora, a partir da vitória de Fernández e Cristina, nós, no Brasil, possamos retomar o gosto pela democracia, liberdade e inclusão social, pelos quais tanto lutamos durante os governos do PT. Acredito que Fernández saiba perfeitamente bem que não há outra alternativa senão colocar um freio ao que Macri realizou, a dependência do FMI nunca foi boa para nenhum país da América Latina. É preciso reconstruir a economia argentina a partir do crescimento, de políticas de transferência de renda, da inclusão dos mais pobres. Quando os mais pobres participam da economia, ela se move, gera mais emprego e renda.”

“A Argentina deve deixar claro que tem o compromisso de pagar a dívida deixada por Macri, mas que não pode sacrificar seu povo. O FMI tem mais condições de esperar que o povo pobre, que tenha paciência. O FMI não teve paciência com os Estados Unidos e Alemanha? Por que não teria com a Argentina?”

“Em suma, estou muito otimista com a posse de Fernández e Cristina, claro que vai demorar um tempo até que a situação seja consertada, isto não acontecerá amanhã ou depois de amanhã, leva tempo. Mas é necessário falar com o povo para mostrar o malefício, o prejuízo que significou Macri.”

Durante a conversa, Lula traçou muitos paralelos entre Brasil e Argentina, mencionou as similitudes entre os governos de Néstor e Cristina Kirchner com os três mandatos e meio do PT (incompletos devido ao golpe contra Dilma), e as semelhanças entre Macri e Bolsonaro, tanto no plano econômico quanto no alinhamento com os Estados Unidos.

“Lembra quando o Macri chegou e parecia que os norte-americanos iam ajudar? E no final não aconteceu nada. Os Estados Unidos não ajudam nenhum país latino-americano, o que eles fazem é incentivar golpes de Estado. Se conseguíssemos unir a América Latina teríamos um bloco forte, mas lamentavelmente Kirchner e Chávez morreram. Os americanos pensam primeiro nos americanos, nunca pensarão no Brasil, eles não levam nenhum país da América Latina a sério. Bolsonaro deveria saber disso.”

“Tenho orgulho de ter dito ‘não’ à ALCA junto com Kirchner para George Bush em Mar del Plata em 2005. Eu já dizia na campanha presidencial de 2002 que se ganhasse iríamos rechaçar o acordo da Alca e fortalecer o Mercosul.”

O senhor mencionou a ideia de soberania mais de uma vez hoje. No caso do Bolsonaro, trata-se de um ex-militar que fala de hino e bandeira, mas que a política contradiz este discurso soberanista.
Bolsonaro deixou de ser militar quando foi expulso do Exército (anos 80). Ele fez uma carreira política de 28 anos no Congresso, e agora trouxe muitos militares para seu governo. Ele não defende a soberania, bate continência para a bandeira norte-americana. Soberania significa defender o povo, a ciência e tecnologia, defender o emprego, as florestas, a água. Bolsonaro está preocupado em agradar o presidente Trump, Carlos Menem também pensava assim, Fernando Henrique pensava o mesmo. Bolsonaro deve aprender que os americanos o respeitarão quando ele respeitar os interesses da nossa pátria. Mas enquanto continuar com esta política de lambe botas ninguém vai respeitá-lo. Com Bolsonaro, o Brasil deixou de ser um protagonista internacional.

Qual a sua estratégia para as eleições de outubro, na metade do mandato bolsonarista?
Quem define a estratégia é o PT, que vai escolher os candidatos para prefeito e os partidos aliados. A partir disso começarei a viajar, vou percorrer as cidades para defender os governos do PT, denunciando a política do governo Bolsonaro, a pobreza que está tomando conta do Brasil e, ao mesmo tempo, fazer com que o povo compreenda a necessidade de eleger prefeitos comprometidos com a melhora de sua qualidade de vida.

Alguns propõem uma frente ampla de esquerda e outros uma frente que inclua partidos conservadores.
É possível construir uma frente mais ou menos ampla de acordo com o tema. Pode-se juntar a pessoas de direita na defesa dos direitos humanos ou da democracia, mas quando se discute um programa de governo, o espectro se estreita um pouco porque é necessário acordar com pessoas que pensem mais ou menos parecido dentro da esquerda, com partidos como o PT, o PCdoB, o Partido Socialista Brasileiro e setores do Partido Democrático Trabalhista (que lançou Ciro Gomes como candidato em 2018). Nós já fizemos alianças eleitorais deste tipo em 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2014, e em 2018. Creio que este tipo de aliança irá ocorrer nas próximas eleições. Lamentavelmente, o Brasil não tem um partido de centro, porque o partido que era de centro, o PSDB de Fernando Henrique Cardoso, acabou. Creio que as eleições vão ser uma disputa entre setores da esquerda contra setores da direita, e agora falamos de uma direita fascista liderada por Bolsonaro.

A candidatura do senhor foi proscrita em 2018. Essa eleição foi legítima?
Não. Na realidade, a campanha foi uma grande mentira porque os meios de comunicação, sobretudo a Rede Globo, atacaram o PT durante todo o tempo. Tivemos todo o poder do Ministério Público, da operação Lava Jato e setores do Poder Judiciário fazendo política contra nós, tentando fazer com que o PT não continuasse seu quarto mandato, que era o de Dilma (derrubada em 2016). Isso influenciou muito porque toda semana havia uma denúncia, acabou favorecendo Bolsonaro. Nesta época dizia-se que ‘eleições sem Lula eram uma fraude’, e a verdade é que foram mesmo uma grande fraude, uma grande mentira. Fernando Haddad (do PT) teve um papel excepcional, foi um candidato de muita qualidade, um homem muito honrado, mas não foi possível vencer.

Como a sua libertação repercutiu no governo?
Creio que eles não queriam que eu saísse do cárcere. Apesar de estar preso, realizei uma atividade política muito importante desde a prisão devido à solidariedade do povo brasileiro, o povo foi extraordinário. Tivemos a vigília de 580 dias também, houve solidariedade de deputados (brasileiros), de intelectuais, juízes e deputados europeus, a visita do atual presidente Alberto Fernández, a visita do companheiro Noam Chomsky, de Baltasar Garzón e outras personalidades, como o companheiro Rodríguez Zapatero, Ernesto Samper, que na época era secretário-geral da Unasul, deputados do Partido Democrata estadunidense, franceses, alemães e italianos. Esta solidariedade fez com que o presidente Bolsonaro e o ministro Moro começassem a se inquietar.

O senhor teme ser preso novamente?
Já vivi muito. Nasci pobre, passei por muitas privações e sou muito grato a Deus porque Ele foi muito generoso comigo, por haver permitido que eu chegasse onde cheguei. Cheguei a ser o presidente mais popular da história do Brasil, não tenho nada a temer, não vai ser a prisão que irá me amedrontar. Ando com a cabeça erguida e não me preocupa se eles querem ou não me prender. Eu quero viver em liberdade, tenho o direito de viver em liberdade e desafio eles, desafio o Moro a mostrar uma única prova contra mim, que mostre um real do meu patrimônio que não seja produto do meu trabalho. Quando temos a verdade dentro da gente, nada dá medo, e eu já provei a minha inocência.

Devemos descartar a ideia de que o senhor dispute um terceiro mandato em 2022?
É difícil, já fui presidente duas vezes. Em 2022 (eleições presidenciais) terei 77 anos e acredito que podemos ter um candidato muito mais jovem. Temos Fernando Haddad, que é mais jovem, e outros quadros importantes tanto dentro quanto fora do PT. Para que eu seja candidato deve haver uma situação irreversível, que demonstre que eu seja a única pessoa capaz de ganhar, de derrotar a direita, mas vamos trabalhar para encontrar pessoas mais jovens que eu, e com mais vigor físico, para melhorar o Brasil.

Então existe a possibilidade da sua candidatura.
Na política nunca dizemos que algo é impossível, ser candidato nunca depende da sua escolha. Se você participa de um partido político, não é você que decide se quer ou não. Muitas vezes até você não tem vontade de ser, mas o partido, em sua grande maioria, entende que você deve ser candidato. E aí, você deve ser candidato por razões políticas decididas pelo partido político. E não há problema, eu sei o que eu quero para o Brasil. O que eu quero é ter muita força política, estar muito bem de saúde porque quero ter influência no resultado político do Brasil. Estou otimista e trabalharei muito para que possamos eleger um presidente progressista em 2022.

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