Lula da Silva: “Não quero apenas estar solto, quero provar a minha inocência”
Brasil. Luiz Inácio Lula da Silva não perdeu sua vitalidade, apesar do complô judicial que o levou a cumprir 580 dias de prisão. Em visita a Paris, o ex-presidente brasileiro afirma que está determinado a defender a democracia contra os ataques da extrema direita e a continuar seu combate contra as desigualdades.
A primeira coisa que chama a atenção é sua linguagem corporal. As mãos que marcam o ritmo da fala, a voz rouca que revela uma paixão pela luta política. Claramente, estes 580 dias na prisão não conseguiram abalar a determinação do ex-presidente do Brasil (2003 – 2011), e a sua vontade de lutar por igualdade, pelos direitos trabalhistas e pela soberania de seu país. Em visita a Paris, antes de ir a Berlim e ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, onde ele irá defender a ilegalidade do processo judicial do qual é alvo, Lula da Silva não sustenta um discurso revanchista. Ao contrário, manifesta um desejo de reconciliar um país que parece estar mais dividido do que nunca. Lula convoca cada indivíduo a mobilizar-se diante do perigo fascista e neoliberal.
Após 580 dias de prisão, o senhor afirma estar “solto, mas não livre”. Qual é a sua situação jurídica?
Nós entramos com um pedido de habeas corpus na Suprema Corte para anular o processo judicial e a decisão do juiz Sérgio Moro (atualmente ministro da Justiça do governo de extrema direita) comprovando que ele agiu de modo parcial. Sua decisão foi política. Já foi demonstrado, não apenas pelos meus advogados mas igualmente graças às revelações do The Intercept, que tanto a polícia federal quanto o juiz mentiram. Eu fui solto por uma decisão da Suprema Corte, porque uma pessoa não pode permanecer presa enquanto houver possibilidade de recurso. Outras ações foram abertas contra mim, que também são como espadas suspensas sobre a minha cabeça. Por que estou tranquilo? Porque eu posso provar que meus acusadores montaram uma farsa para me excluir das eleições presidenciais. Já desafiei o juiz Moro para um debate público comigo. Que ele apresente provas de que cometi um erro para a sociedade! Em cada processo, eu apresentei dezenas de testemunhas enquanto a acusação não apresentou nenhuma. A promotoria se embasou na delação de mentirosos, que trocaram informações por redução de pena ou até mesmo libertação. Enquanto estive preso, algumas pessoas tentaram me convencer a aceitar a prisão domiciliar. Eu recusei. Não quero apenas estar solto, quero provar a minha inocência. Não quero favores da Justiça. Que provem que eu cometi um crime ou reconheçam que montaram uma farsa judicial para impedir que eu me candidatasse às eleições presidenciais. É o dito “lawfare”, isto é, a utilização da justiça para criminalizar personalidades políticas.
O presidente Jair Bolsonaro realizou uma convocação para as manifestações antiparlamentares do dia 15 de março, organizadas pela extrema direita. Estes ataques contra o Congresso são um indício de transição para uma ditadura ou estão mais para um sinal de desvario do poder Executivo?
É natural que um partido de situação convoque manifestações em defesa do governo, e também que um partido de oposição proteste. O que não é normal é um presidente, no pleno exercício de suas funções, apoiar uma manifestação cujo objetivo é atacar o Congresso Nacional e a Suprema Corte. Isto enfraquece a Constituição e o equilíbrio de poderes. É um gesto irresponsável de Jair Bolsonaro que, ao que me parece, adoraria governar sem o Congresso e a Suprema Corte, e junto aos milicianos que ele apoia. A situação é grave. É anormal que um presidente da República adote tal atitude. O Congresso é uma instituição que possui pouco crédito junto à sociedade porque todo santo dia, no rádio, na televisão e nos jornais, são difundidas apenas críticas. E elas não focam nos deputados ou nos partidos, são generalizadas. Desde o golpe, o Congresso não é mais visto como uma instituição de qualidade pela sociedade. Este parlamento é atualmente dominado por ultraconservadores, mas eles foram eleitos. As chamadas para a manifestação do dia 15 de março são uma tentativa de desacreditar as instituições democráticas. Eu posso ter muitas desavenças com o Congresso e a Suprema Corte, mas estas instituições, no fim das contas, são garantias para uma regime democrático.
O chefe de Estado faz muitas declarações racistas e coloca o mérito da demarcação de terras indígenas em xeque. Por que estes ataques de ódio contra os povos indígenas e os descendentes de povos escravizados?
Bolsonaro jamais deixou de atacar mulheres, indígenas, negros e de defender o porte de armas. Em vez de presidente, ele poderia ser um xerife do faroeste norte-americano. A sua eleição foi fruto de uma campanha de ódio, de descrédito da política e dos partidos. Ele conseguiu espalhar a ideia de que não era um político, apesar de ter sido deputado durante 28 anos. Ele convenceu as pessoas de que não fazia parte e de que seria, inclusive, um inimigo do sistema. Houve uma campanha violenta da extrema direita contra o PT, contra as conquistas sociais dos nossos governos. Resultado: a democracia pariu Bolsonaro e, agora, a sociedade brasileira deve tomar conta deste filho incômodo. O presidente não fala com a imprensa, ele resolve tudo através de ‘fake news’, tuítes e vídeos… Ele quer passar seus absurdos, seus palavrões, seu ódio pela democracia como coisas naturais. É normal, para ele, que seu filho declare que um militar pode fechar a Suprema Corte. Ele banaliza estas ideias até que se tornem aceitáveis para alguns.
Exceto os grupos tradicionalmente combativos, a sociedade brasileira custa a se mobilizar diante deste neoliberalismo autoritário. O senhor observa alguma forma de apatia?
No Brasil, nós temos o costume de dizer que a sociedade tolera tudo no começo do mandato. O ganhador das eleições não é obrigado a acertar tudo, a conhecer o funcionamento da máquina governamental. Mesmo a oposição se mostra paciente no início. Qual a situação? Bolsonaro não tem respostas para a economia. Não há crescimento, criação de empregos ou valorização dos salários. Ele prometeu um crescimento de 2,5% para o PIB, que não deve ultrapassar 1,2 % este ano. Seu ministro da Economia demanda um prazo de quinze semanas para apresentar resultados. É o tempo para privatizar a empresa estatal petrolífera Petrobras, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco do Brasil. Como Bolsonaro não obtém sucesso na recuperação do crescimento econômico, ele desvia a atenção com seus disparates. É uma maneira de fugir. Por exemplo, ele nunca fala do assassinato de Marielle Franco. Toda vez que alguém menciona os milicianos envolvidos neste crime, ele evita o assunto: eles se conhecem, mas ele finge que isso não diz respeito a ele. Não há avanços na saúde, na educação. Ao contrário, ele destruiu os avanços possibilitados pelas políticas sociais do Partido dos Trabalhadores. É assim que ele toca o barco, é lamentável. Podemos perceber que a sociedade tem vontade de reagir, mas é preciso tempo para que ela desperte.
Quais as consequências das reformas estruturais, como a da Previdência Social?
Eles têm uma proposta de reforma das aposentadorias na qual a pedra angular é a capitalização, mais ou menos como o modelo chileno trazido pelo ministro da Economia, um homem ligado aos economistas de Pinochet, provenientes dos Chicago Boys. No entanto, o governo não conseguiu implementar a capitalização no Brasil: o sistema solidário, por contribuição, continua. Concordo que se reforme o sistema de aposentadorias para adaptá-lo aos novos tempos, com o aumento da expectativa de vida. Mas a boa política pede que a sociedade seja ouvida, que haja debate. Eu vi que na França o Emmanuel Macron evocou o dispositivo 49.3 para passar sua reforma sem debate. Ele é o presidente da República, não o dono do país.
No Brasil, a reforma trabalhista desmantelou os direitos dos trabalhadores. Estas reformas foram impostas em 165 países do mundo: os trabalhadores são derrotados em toda parte. Trata-se de acabar com o Estado de Bem-estar social criado após a Segunda Guerra Mundial, de fazer os trabalhadores pagarem a fatura da crise. No Brasil e na América Latina nós não temos este Estado de bem-estar. Até os direitos que deveriam ser estabelecidos são questionados. A partir da substituição dos empregos estáveis pelos precários e mal remunerados, a exemplo dos criados pela Uber, é a própria estabilidade que a humanidade precisa para viver em paz que está ameaçada. Levantar-se pela manhã, ter um emprego digno, ser amparado por um sistema de saúde, isto é salutar. Eles estão nos tirando estes direitos, fazendo de nós homens e mulheres subjugados, como éramos no começo da era industrial. Às vezes eu tenho medo de ser visto como um nostálgico, um jurássico, porque eu vejo as pessoas escravas de seus celulares, o dia inteiro. Comem, bebem, trabalham e namoram com o nariz grudado no celular. Estamos submetidos a algoritmos que nos manipulam e podem até forjar eleições. Trump e Bolsonaro são o resultado destas manipulações e da disseminação de ódio possibilitadas por estas tecnologias, que poderíamos estar utilizando para outros fins.
Quando estava no poder, o PT e seus aliados conduziram políticas sociais que permitiram a saída da pobreza de parte significativa da população. Porém, sem refundar o modelo de desenvolvimento no Brasil. Quais foram os obstáculos?
Nós conseguimos colocar em prática as maiores políticas de inclusão social da história do nosso país. Fizemos da Petrobrás a sétima maior petrolífera do mundo. Fizemos as maiores descobertas de petróleo do século, com as reservas de pré-sal. Quando cheguei à presidência do país, havia menos de 3 000 trabalhadores na indústria naval. Quando deixei o poder, eram mais de 80 000. O número de pessoas que começaram a ter acesso a geladeiras, máquinas de lavar e televisão aumentou dez vezes. Mais de 16 milhões de pessoas foram beneficiadas com os programas de acesso à eletricidade nas zonas rurais. Em muitos setores, o Brasil é muito competitivo, e podemos nos considerar entre os maiores em âmbito global. Nossa empresa aeronáutica, Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica), a terceira maior do mundo no setor, acabou de ser privatizada. Ela concorria com a canadense Bombardier. O governo demoliu todas as bases para o desenvolvimento do Brasil. Sem investimentos em educação, pesquisa e tecnologia não há nenhuma chance de desenvolver setores de ponta. Nenhum país pode se desenvolver sem apostar na educação. Em treze anos, nós abrimos as portas das universidades para 4 milhões de jovens: negros, indígenas e provenientes de famílias de baixa renda. Isto incomodou muito a elite. O Brasil deve se reconciliar consigo mesmo, se deseja construir um novo modelo de desenvolvimento. É um país gigante, com 210 milhões de habitantes e suas indústrias podem produzir para este vasto mercado interno. Todas as condições são favoráveis, mas o governo atual dá as costas para esta opção de desenvolvimento.
O PT apresentou recentemente um programa de emergência voltado para o investimento público e a criação de empregos. Nós defendemos também uma reforma fiscal para aumentar a contribuição dos ricos: taxar grandes fortunas e heranças, modificar o cálculo do imposto de renda para aliviar o peso nos salários mais modestos. As eleições presidenciais se aproximam. Nós esperamos, com os partidos de oposição e o movimento sindical, suscitar uma grande mobilização ao redor deste programa, para defender a democracia no Brasil.
Com a sequência de golpes de Estado ou tomadas de poder apoiadas pelos Estados Unidos na América Latina, como o senhor analisa a estratégia norte-americana?
Historicamente, os Estados Unidos nunca auxiliaram o desenvolvimento na América Latina. Atualmente, os norte-americanos têm um problema: nos próximos anos, a economia chinesa irá ultrapassar a deles e será a primeira economia do mundo. A China realiza investimentos muito importantes na África e na América Latina. Washington quer pará-los. A administração norte-americana pensa que é dona da América Latina. Vemos as perseguições contra Christina Kirchner, os acontecimentos no Equador, na Bolívia contra Evo Morales, no Peru … com tentativas de interferência do Departamento de Justiça estadunidense em diferentes processos na América Latina, sobretudo nos meus. Aliás, vários procuradores norte-americanos festejaram a minha prisão. O Brasil nunca esteve tão subordinado aos Estados Unidos. Firmar um acordo militar nestas condições irá nos trazer prejuízos. Defender a soberania nacional é defender nossas fronteiras, nossa educação, nossa pesquisa, nossa Amazônia, nossas águas doces. Significa defender nosso próprio modelo de crescimento e nosso modelo de relações internacionais para não nos subordinarmos a ninguém, mas sermos parceiros de todos.
Qual o papel que o senhor deseja desempenhar no quadro das eleições presidenciais de 2022? Como o senhor irá conduzir sua luta contra a desigualdade?
Eu não me coloco dentro das perspectivas nas eleições de 2022. Eu quero criar indignação contra as desigualdades econômicas e de gênero. Nós devemos garantir a igualdade entre homens e mulheres, também no acesso a cargos políticos, combater o racismo e os preconceitos. Devemos pensar nos nossos jovens. Não podemos, desde o nascimento, ditar que uma criança será médica e a outra favelada. É preciso também debater a questão da desigualdade de renda. Que tipo de ser humano eu seria se dormisse tranquilo sabendo que meus filhos e netos têm o que comer enquanto milhões de crianças no mundo não têm ao menos um copo de leite. Que mundo é este onde os bilionários se consideram humanitários só porque criaram uma fundação para ajudar meia dúzia de pessoas na África? Que mundo é esse que permite que uma pessoa acumule bilhões enquanto a maior parte da população ganha menos de dois dólares por dia? O que custa caro não é o combate à pobreza, é cuidar dos ricos. Quando você dá um bilhão, eles vão montar nas suas costas porque querem dois. Eu estou aposentado, mas não posso me aposentar da minha luta. Aos 74 anos eu poderia sossegar, mas busco uma arena de luta. A única luta que não pode ser perdida é aquela pela qual se luta verdadeiramente.
Lula perante o Comitê de Direitos Humanos da ONU
Ainda às voltas com diversos processos judiciais, o ex-presidente irá defender sua causa, nesta quinta-feira, perante o Comitê de Direitos Humanos da ONU. O órgão de fiscalização do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos é responsável por zelar pelo pacto internacional que trata dos direitos civis e políticos e pelo protocolo facultativo associado a ele associado. Como o Brasil ratificou os dois textos, é tecnicamente obrigado a respeitar as decisões do Comitê. Lula espera poder denunciar sua condenação por “fatos indeterminados”, isto é, sem provas. Em 2018, este Comitê deliberou a favor do ex-presidente e solicitou que a Justiça brasileira autorizasse Lula da Silva a participar das eleições presidenciais mesmo preso, pois seus recursos ainda não haviam sido esgotados.