28 de setembro de 2018

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O que Lula da Silva significou para o povo brasileiro não é possível explicar se não levarmos em conta a situação em que o país estava após o fracasso do modelo neoliberal imposto por décadas pela oligarquia brasileira.

Se não considerarmos a questão estrutural, constante em todos os governos de mudança na América Latina, a enorme corrosão do Estado provocada pelas elites econômicas, que historicamente venceram as batalhas institucionais nesses países, dificilmente encontraremos as chaves interpretativas adequadas para entender os fenômenos sociais que se expressaram nessas nações nos últimos anos.

O caso brasileiro é paradigmático nesse sentido. Para as elites brasileiras extrativistas, dedicadas à exploração privada e descontrolada de recursos comuns e à sua venda no exterior, grande parte da população nunca existiu como cidadãos, mas simplesmente como seres humanos que tinham necessidades básicas não satisfeitas.

As elites oligárquicas do Brasil projetaram a estrutura do Estado à sua medida, controlando e definindo por décadas os diferentes mecanismos de gestão e intervenção pública, o que explica por que essas oligarquias nacionais tenham ficado claramente incomodadas com o governo Lula – embora não lhes tenha causado muitos danos durante seus mandatos – e o seu projeto de controle dos bens públicos.

Portanto, desde o primeiro momento, e sempre com o auxílio dos grupos privados de comunicação, elas tentaram enfraquecer incansavelmente os sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores.

Após a vitória nas eleições de 2002, Lula se deparou com a herança social e econômica do fracasso do modelo neoliberal liderado por Fernando Henrique Cardoso: um país devastado pela desigualdade e pobreza, desindustrializado, com um papel do Estado na economia totalmente enfraquecido e com um monopólio privado total da mídia.

De forma surpreendente, levando em conta o fato de que o PT nunca teve maioria parlamentar e que grande parte das estruturas de poder herdadas não foram questionadas (entre elas a mídia, que desempenhou um papel fundamental para o fim do governo Dilma Rousseff), Lula conseguiu reverter o modelo social e pôr em marcha um processo inédito no Brasil de crescimento econômico e desenvolvimento, modernização e redistribuição de renda.

Demonstrando uma grande capacidade de chegar a acordos (diz-se que ele fez ótimo uso da sua cultura sindical), e sem nunca perder de vista o objetivo final, tornar o Brasil uma referência mundial, Lula passou a colocar no centro de suas políticas as maiorias sociais, conseguindo que milhões saíssem da pobreza e tivessem acesso à educação pública, à saúde pública e a moradia digna.

Ele também apostou numa nova integração regional na América Latina, recuperou a soberania nacional, restaurou o papel do Estado na economia e conseguiu alavancar a imagem do Brasil internacionalmente. Em suma, como o próprio Lula afirmava, o grande legado de seus governos democráticos e populares foi recuperar o orgulho, a soberania popular e a autoestima do povo brasileiro.

Nesse sentido, Lula foi muito mais que um presidente: significou um antes e um depois para o Brasil. Foi ele que reverteu um modelo injusto, foi ele que, combinando crescimento econômico com desenvolvimento social, fez aqueles historicamente desprezados pelas elites se tornarem cidadãos e cidadãs de pleno direito e sentirem orgulho de ter uma pátria, orgulho de se reconhecerem como brasileiros. Pode-se dizer que Lula foi o refundador do Brasil democrático, moderno e republicano.

Sua popularidade e sua boa imagem internacional, sua grande capacidade de ouvir e chegar a acordos com todos os atores sociais e econômicos, sua forte aposta pela integração latino-americana, que na época era facilitada pela hegemonia dos governos populares na América Latina, mas acima de tudo, a natureza fundacional e sentimental de sua figura, foi o que impediu o êxito das manobras das elites oligárquicas brasileiras, apesar de nunca terem cessado suas tentativas de acabar com os governos do PT, com uma campanha sistemática de ataque dos grupos privados de comunicação que continuamente abusaram de referências negativas sobre Lula e silenciaram a realidade social e política.

Então, se tivermos que aprender alguma coisa com o que está acontecendo agora no Brasil, é claro para os poderosos: se algo ou alguém os incomodar, eles tentarão eliminar. Com o ataque que temos testemunhado à democracia brasileira, está demonstrado que as elites não perdoam e, se tiverem uma oportunidade, vão aproveitá-la até o fim, sem se preocupar com as consequências sociais decorrentes.

Embora com Lula eles não tenham conseguido, aproveitaram a crise da economia internacional, a mudança de ciclo na América Latina, e também, obviamente, certos erros do governo, para iniciar uma forte ofensiva desestabilizadora que, como ficou demonstrado, não só procurou destituir a presidenta Dilma Rousseff, mas que tinha duas pretensões.

Por um lado, acabar completamente com o modelo que nasceu com Lula, com políticas que acabaram com as melhoras sociais alcançadas (o governo Temer congelou os gastos sociais nos próximos 20 anos), aumentar a militarização das ruas, apostar na judicialização da política e, claro, colocar à venda o Brasil e sua soberania.

 Por outro, acabar não apenas com o modelo que os governos do PT construíram, mas com quem deu origem ao Brasil moderno e inclusivo, o ex-presidente Lula.

Lula hoje está condenado injusta e ilegalmente a 12 anos de prisão e o Tribunal Superior Eleitoral impediu que ele concorresse às eleições de 7 de outubro, apesar de o Comitê de Direitos Humanos da ONU ter apelado diretamente ao governo brasileiro para garantir os seus direitos políticos, incluindo o de ser candidato.

As pesquisas dizem que se Lula concorresse nas eleições, ganharia mais de 40% dos votos e provavelmente levaria no primeiro turno. Talvez isso, o fato de que ele seria o vencedor das eleições, explique a recusa das elites políticas e econômicas à possibilidade de Lula exercer seus direitos e apresentar-se como candidato, mesmo que isso permita se questionar internacionalmente o sistema democrático brasileiro.

Ao fim e ao cabo, nunca deixaram de pensar com arrogância que o Estado e o país eram apenas deles, uma empresa a mais do seu conglomerado. Desta vez, as elites dominantes não vão cometer o erro de deixar Lula voltar ao cenário político brasileiro porque ficou demonstrado que, apesar do que eles acreditavam, um metalúrgico, pobre, sem escola, mas com ideias claras, soube governar e se converter numa referência de esperança para a maioria.

Para as elites, o ex-presidente representa um enorme perigo para seus privilégios, mas para muitos outros brasileiros, a grande maioria, Lula é o símbolo de que a história nem sempre é escrita por aqueles acima, é o símbolo da esperança de emancipação popular.

Sabemos que o que está em jogo é a democracia no Brasil e também na América Latina. Será não apenas eleito um governo, será definido o rumo de um continente. Estamos diante de oportunidade de abrir de novo um momento progressista na região, uma vez que, pela primeira vez e esperançosamente, o México finalmente olha para o sul.

Para isso, é essencial não recuar diante da ofensiva neoliberal na região e talvez refletir, localmente e a partir dos seus próprios protagonistas, sobre diversos temas:

Como podemos superar a grande fragilidade que as democracias latino-americanas apresentaram ao transformar as políticas governamentais em políticas irreversíveis que lhes permitem despojar-se do Estado que herdaram das vitórias históricas das elites?

Que relações são estabelecidas a partir dos governos de esquerda com os movimentos populares e como manter viva a sinergia com eles, uma vez que são o apoio final dos governos populares?

Além disso, é preciso analisar dois elementos cruciais, como sustenta o companheiro e deputado federal pelo PT, Paulo Pimenta: como aprofundar uma agenda conjunta em defesa das riquezas naturais do continente e, com isso, como reconstruir o modelo de integração regional e, acima de tudo, o que é mais importante, como desenvolver espaços que permitam aos países latino-americanos compartilhar experiências e formas comunicativas para enfrentar os ataques da mídia e a manipulação da informação?

Neste sentido, e em referência a este último, gostaria de acrescentar a necessidade que temos de fazer um esforço para analisar e encontrar uma maneira de unir e enriquecer esses espaços comunicativos de coordenação regional com outras experiências comunicativas de opções de mudança que existem na Europa e que também são alvo constante de grandes grupos de mídia.

Esse grande espaço de aprendizado e coordenação comunicativa, entre as diferentes opções de mudança, é uma grande tarefa para começar a enfrentar as narrativas da mídia que buscam nos derrotar antes do combate. Tudo isso e muito mais é o que está em jogo no Brasil nas próximas semanas.

Sabemos que o Lula já é muito mais que um político e um candidato: é um sentimento, uma ideia. É por isso que o PT decidiu dar um passo à frente e não dar como perdida a batalha, apresentando o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, às eleições presidenciais de outubro próximo para enfrentar e derrotar o crescente monstro, Jair Bolsonaro, que é o novo fruto da velha atitude de desprezo das elites brasileiras em relação ao seu povo.

Daqui da Espanha, estaremos muito atentos ao que acontece no Brasil. Estamos cientes do que está em jogo nessas eleições: não é apenas uma eleição, é uma decisão.

O Brasil decide entre democracia e submissão, entre esperança e resignação, entre construir seu futuro em liberdade, como um povo soberano, ou recuar e ceder ao medo. Nós confiamos no povo, e temos certeza de que é possível fazer o Brasil feliz de novo e abrir um novo tempo na América Latina e no mundo. Só no povo confiamos.

Fran Casamayor é cientista político e atualmente é secretário de Organização do PODEMOS em Madri, Espanha.

Carta Capital